A reforma tributária que avança no Congresso Nacional promete simplificação e racionalidade ao sistema fiscal brasileiro — um dos mais complexos do mundo. No entanto, segundo a economista Ligia Polido, uma das maiores especialistas do país em tributação e política fiscal, o texto atual peca por não enfrentar a essência da injustiça tributária brasileira: a regressividade.

“É urgente esclarecer que simplificar não é sinônimo de tornar o sistema mais justo”, afirma a professora do Insper, que também atua como consultora técnica de reformas fiscais para organismos multilaterais. “O Brasil tributa pesadamente o consumo, e isso penaliza justamente os que têm menos. A reforma que está sendo discutida mantém esse vício de origem.”

De fato, o sistema tributário nacional é um dos mais regressivos entre as economias da OCDE e América Latina. Mais de 45% da arrecadação total vem de tributos sobre o consumo, como ICMS, PIS e Cofins. Essa estrutura faz com que as famílias mais pobres destinem uma parcela muito maior da sua renda para pagar impostos — mesmo quando isentas do Imposto de Renda.

Segundo Polido, a proposta atual, embora avance na unificação de tributos e na transparência, deixa de lado o elemento redistributivo que deveria estar no centro da reforma:

“O que está em jogo não é apenas eficiência, mas a possibilidade de usar o sistema tributário como instrumento de justiça social. A reforma, como está, moderniza a forma, mas perpetua o conteúdo — e esse conteúdo é excludente.”

A economista defende que uma reforma verdadeiramente transformadora precisa prever mecanismos de progressividade e devolução para populações de baixa renda, além de atacar a subtributação da renda e do patrimônio no topo da pirâmide.

“É perfeitamente possível adotar alíquotas diferenciadas, mecanismos de devolução de impostos para os mais pobres — como o Canadá faz —, e fortalecer a tributação direta sobre grandes fortunas e heranças. Mas isso exige vontade política.”

Ligia destaca ainda o risco de se apresentar a “neutralidade econômica” como uma panaceia. Segundo ela, esse conceito, quando mal aplicado, pode servir de cortina de fumaça para decisões que mantêm privilégios sob o discurso da tecnicidade:

“Nenhum sistema é neutro quando se trata de tributar a realidade brasileira. A desigualdade precisa ser enfrentada dentro do desenho fiscal. O resto é cosmética.”

Com experiência acumulada em missões técnicas no Brasil e no exterior, Polido alerta para o risco de o país perder uma oportunidade histórica:

“É a primeira grande reforma em décadas. Se não aproveitarmos esse momento para corrigir o viés regressivo e ampliar a justiça fiscal, talvez tenhamos de esperar mais 20 ou 30 anos para fazer isso.”

A economista defende, ainda, maior protagonismo da sociedade civil no debate:

“Não podemos terceirizar esse debate aos técnicos de Brasília. Tributo é política pública, e política pública se constrói com participação democrática, dados e transparência.”

Ligia Polido
Economista, professora do Insper e consultora em políticas fiscais e regulatórias.